Wednesday, March 06, 2013

"Memórias de um Livreiro" por George Orwell

"Quando trabalhei num alfarrabista - um lugar que aqueles que nunca lá trabalharam facilmente imaginam como uma espécie de paraíso onde respeitáveis cavalheiros de ar simpático folheiam eternamente in-fólios encadernados -, o que mais me impressionou foi a escassez de verdadeiros amantes de livros. Apesar de a nossa livraria dispor de um lote de obras excepcionalmente interessante, duvido que sequer 10 por cento dos nossos clientes soubesse distinguir os bons livros dos que não prestam. Snobes à cata de primeiras edições eram bem mais numerosos do que apaixonados pela literatura, mas estudantes orientais a regatear o preço dos compêndios baratos eram ainda mais numerosos, e mulheres despassaradas em busca de presentes de aniversário para os sobrinhos eram as mais numerosas de todos.
Muitos dos que cruzavam a nossa porta eram o género de indivíduos capazes de importunar tudo e todos em qualquer lugar, mas, numa livraria, dispunham de um campo de manobra especialmente vasto. Por exemplo, a encantadora velhinha que «quer um livro para um inválido» (um pedido bastante comum, diga-se), ou a outra encantadora velhinha que leu um livro delicioso em 1897 e deseja saber se lhe conseguimos arranjar um exemplar. Infelizmente, não se lembra do título do livro nem do nome do autor nem sequer do tema da obra, mas recorda-se, isso sim, de que tinha capa vermelha. À parte estes, porém, dois géneros bem conhecidos de praga assolam todos os alfarrabistas. Em primeiro lugar, temos o fulano de ar decrépito, a cheirar a côdeas bolorentas, que vem à livraria todos os dias, mais do que uma vez por dia em certos casos, tentando vender-nos livros imprestáveis. Em segundo lugar, há a pessoa que encomendas grandes quantidades de livros, sem ter a mais pequena intenção de os pagar. Na nossa loja nunca vendíamos a crédito, mas púnhamos obras de parte, ou encomendávamo-las a outras livrarias, se necessário, para pessoas que combinavam vir buscá-las mais tarde. Nem metade dos indivíduos que nos encomendavam livros chegavam a vir levantá-los. A princípio, isto deixava-me intrigado. O que é que os levaria a fazer isto? Entravam, pediam um livro raro e dispendioso, obrigavam-nos a prometer vezes sem conta que lho iríamos reservar e, em seguida, desapareciam para sempre sem deixar rasto. Como é óbvio, muitas destas pessoas eram, sem sombra de dúvida, paranóicas. Falavam de si próprias em tom grandiloquente e contavam as histórias mais rocambolescas para explicar o facto de terem saído de casa sem um tostão no bolso - histórias estas a que, em muitos casos, elas próprias davam crédito, tenho a certeza. Numa cidade como Londres, há sempre imensos loucos a quem esse estatuto não é reconhecido, e que têm tendência para convergir para as livrarias, já que uma livraria é um dos poucos lugares onde se pode permanecer imenso tempo sem se gastar dinheiro. No fim de contas, a experiência ensina-nos a reconhecer estas pessoas quase à primeira vista. Não obstante as fanfarronadas e a bazófia, há nelas qualquer coisa de roído pela traça e de errático. Muitas vezes, quando estávamos a lidar com um paranóico óbvio, púnhamos de parte os livros que ele pedia e, mal o víamos sair porta fora, tornávamos a arrumá-los nas estantes. Nenhum destes fulanos, pude reparar, alguma vez tentou elevar livros sem pagar; reservá-los constituía satisfação suficiente - proporcionava-lhes, julgo eu, a ilusão de estarem a gastar dinheiro genuíno.
À semelhança da maioria dos alfarrabistas, não nos limitávamos a vender livros em segunda mão. Vendíamos também máquinas de escrever usadas, por exemplo, e também selos - selos usados, quero eu dizer. Os filatelistas são uma casta estranha, silenciosa, semelhante a uma variedade de peixes, de todas as idades, mas apenas do sexo masculino; as mulheres, aparentemente, mostram-se insensíveis ao estranho encanto do acto de colar quadradinhos de papel colorido em álbuns. Também vendíamos horóscopos a seis dinheiros, compilados por alguém que se gabava de ter previsto o terramoto no Japão. Vinham em sobrescritos fechados e eu próprio nunca abri nenhum, mas era frequente as pessoas que os compravam regressarem mais tarde, dizendo-nos que o horóscopo se revelara «certíssimo». (Sem dúvida, qualquer horóscopo nos parece «certíssimo» se disser que somos extremamente atraentes aos olhos do sexo oposto e que o nosso pior defeito é a generosidade). Fazíamos bom negócio coma venda de livros infantis, sobretudo restos de edição a preços de saldo. Os modernos livros infantis são objectos bastante horrendos, principalmente quando os vemos em grandes quantidades. (...)"

Isto é por demais real... vale a pena ler o resto, dirija-se a uma livraria e compre o livrinho.

George Orwell, in 'Livros &Cigarros'