Friday, August 09, 2013

"Cidades Invisíveis" de Italo Calvino



As "Cidade Invisíveis" é um romance diferente, inspirador, mágico... tem nas suas páginas passagens incrivelmente maravilhosas. Marco Polo relata na perfeição ao imperador Kublai Khan todas as suas cidades imaginárias e todas elas com nomes de mulheres. Há cidades que deixam o leitor a levitar na sua própria descrição. Aqui fica o remate final de Marco Polo:

"O inferno dos vivos não é uma coisa que virá a existir; se houver um, é o que já está aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que nós formamos ao estarmos juntos. Há dois modos para não o sofrermos. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o inferno e fazer parte dele a ponto de já não o vermos. O segundo é arriscado e exige uma atenção e uma aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer, no meio da inferno, quem e que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe lugar."

Thursday, July 25, 2013

Atreves-te a voar?

A gaivota voa pela primeira vez e lá do alto:
"- Estou a voar! Zorbas! Sei voar - grasnava ela, eufórica, lá da vastidão do céu cinzento.
O humano acariciou o lombo do gato.
- Bem, gato, conseguimos - disse suspirando
- Sim, à beira do vazio compreendeu o mais importante - miou Zorbas.
- Ah, sim? E o que é que ela compreendeu? - perguntou o humano
- Que só voa quem se atreve a fazê-lo - miou Zorbas."
Luis Sepúlvuda, in 'História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar'

Sunday, June 09, 2013

Debate eslavo, húngaro acerca da ausência.

É de facto curioso o que li esta semana na "Cotovia" de Dezsö Kosztolányi. A Cotovia embarca na sua viagem e o autor descreve a sua partida da seguinte forma:

"Quem parte é alguém que desaparece, se aniquila, já não existe. Vive exclusivamente como lembrança, que visita com frequência a nossa imaginação. Sabemos que está algures mas não o vemos, tal como os que morreram"

É uma perspectiva um pouco melodramática mas que de entre todo o seu exagero da partida não deixa de ter alguma razão na evidente quebra de sinal e correspondência entre dois seres humanos. É óbvio que torna-se dramático falar neste sentido sabendo que a Cotovia apenas estaria fora uma semana e neste caso Milan Kundera sabe bem definir o que podemos sentir nestes momentos de ausência:

"Styska se mi po tobe"

Friday, May 24, 2013

Monday, April 08, 2013

"Identidade" Kundera, "Stasiland" Anna Funder


Hoje dei como terminadas duas leituras, "Stasiland" da australiana Anna Funder e "Identidade" de Milan Kundera. Deve ter sido a primeira vez na vida que acabei dois livros no mesmo dia e, como tal, é algo a registar. Os dois acabam por ter uma relação curiosa entre si, se os sobrepormos e delinearmos os mesmos na história mundial conseguimos subentender que na antiga RDA, havia claramente uma identidade muito própria, de tal forma que muitos, para além do Muro, no lado Leste, perderam a sua própria... identidade. "Stasiland" conta-nos várias histórias sobre a Alemanha do Leste, testemunhos reais de pessoas que sofreram na pele a herança estalinista, de pessoas que fizeram parte dos esquemas de perseguição e espionagem e tudo isto é, realmente, impressionante porque há muita gente que desconhece todo o drama dos anos em que as Alemanha's estiveram separadas. Há um facto muito curioso e que define a grandeza da Stasi na antiga RDA: "Após a queda do Muro, os meios de comunicação social alemães chamaram à Alemanha do Leste «o estado de vigilância mais aperfeiçoado de todos os tempos.». No total, a Stasi contava com 97000 funcionários - mais do que o suficiente para fiscalizar um país de 17 milhões de pessoas. Mas contava igualmente com mais de 173000 informadores entre a população. No Terceiro Reich de Hitler, estima-se que havia um agente da Gestapo para cada 2000 cidadãos, e na Rússia de Estaline havia um agente da KGB por cada 5830 pessoas. Na RDA, havia um agente ou informador da Stasi por cada 73 pessoas. Se forem incluídos os informadores em tempo parcial. algumas estimativas apresentam um número tão elevado como um informador para cada 6,5 cidadãos."
"Identidade" é o meu terceiro livro de Milan Kundera depois de "Ignorância" e "Insustentável leveza do Ser". A "Identidade" é uma busca profunda ao que significamos; é um livro de rápida leitura, a não ser que se vá lendo exclusivamente nas pausas literárias (10 minutos) do trabalho literário. Há no livro um parágrafo que define bem a busca e define também muito dos alemães do Leste e a ex-RDA "Qual foi o momento exacto em que o real se transformou em irreal, a realidade em devaneio? Onde estava a fronteira? Onde está a fronteira?" 
"Stasiland" já não é editado no nosso país.

Wednesday, March 06, 2013

"Memórias de um Livreiro" por George Orwell

"Quando trabalhei num alfarrabista - um lugar que aqueles que nunca lá trabalharam facilmente imaginam como uma espécie de paraíso onde respeitáveis cavalheiros de ar simpático folheiam eternamente in-fólios encadernados -, o que mais me impressionou foi a escassez de verdadeiros amantes de livros. Apesar de a nossa livraria dispor de um lote de obras excepcionalmente interessante, duvido que sequer 10 por cento dos nossos clientes soubesse distinguir os bons livros dos que não prestam. Snobes à cata de primeiras edições eram bem mais numerosos do que apaixonados pela literatura, mas estudantes orientais a regatear o preço dos compêndios baratos eram ainda mais numerosos, e mulheres despassaradas em busca de presentes de aniversário para os sobrinhos eram as mais numerosas de todos.
Muitos dos que cruzavam a nossa porta eram o género de indivíduos capazes de importunar tudo e todos em qualquer lugar, mas, numa livraria, dispunham de um campo de manobra especialmente vasto. Por exemplo, a encantadora velhinha que «quer um livro para um inválido» (um pedido bastante comum, diga-se), ou a outra encantadora velhinha que leu um livro delicioso em 1897 e deseja saber se lhe conseguimos arranjar um exemplar. Infelizmente, não se lembra do título do livro nem do nome do autor nem sequer do tema da obra, mas recorda-se, isso sim, de que tinha capa vermelha. À parte estes, porém, dois géneros bem conhecidos de praga assolam todos os alfarrabistas. Em primeiro lugar, temos o fulano de ar decrépito, a cheirar a côdeas bolorentas, que vem à livraria todos os dias, mais do que uma vez por dia em certos casos, tentando vender-nos livros imprestáveis. Em segundo lugar, há a pessoa que encomendas grandes quantidades de livros, sem ter a mais pequena intenção de os pagar. Na nossa loja nunca vendíamos a crédito, mas púnhamos obras de parte, ou encomendávamo-las a outras livrarias, se necessário, para pessoas que combinavam vir buscá-las mais tarde. Nem metade dos indivíduos que nos encomendavam livros chegavam a vir levantá-los. A princípio, isto deixava-me intrigado. O que é que os levaria a fazer isto? Entravam, pediam um livro raro e dispendioso, obrigavam-nos a prometer vezes sem conta que lho iríamos reservar e, em seguida, desapareciam para sempre sem deixar rasto. Como é óbvio, muitas destas pessoas eram, sem sombra de dúvida, paranóicas. Falavam de si próprias em tom grandiloquente e contavam as histórias mais rocambolescas para explicar o facto de terem saído de casa sem um tostão no bolso - histórias estas a que, em muitos casos, elas próprias davam crédito, tenho a certeza. Numa cidade como Londres, há sempre imensos loucos a quem esse estatuto não é reconhecido, e que têm tendência para convergir para as livrarias, já que uma livraria é um dos poucos lugares onde se pode permanecer imenso tempo sem se gastar dinheiro. No fim de contas, a experiência ensina-nos a reconhecer estas pessoas quase à primeira vista. Não obstante as fanfarronadas e a bazófia, há nelas qualquer coisa de roído pela traça e de errático. Muitas vezes, quando estávamos a lidar com um paranóico óbvio, púnhamos de parte os livros que ele pedia e, mal o víamos sair porta fora, tornávamos a arrumá-los nas estantes. Nenhum destes fulanos, pude reparar, alguma vez tentou elevar livros sem pagar; reservá-los constituía satisfação suficiente - proporcionava-lhes, julgo eu, a ilusão de estarem a gastar dinheiro genuíno.
À semelhança da maioria dos alfarrabistas, não nos limitávamos a vender livros em segunda mão. Vendíamos também máquinas de escrever usadas, por exemplo, e também selos - selos usados, quero eu dizer. Os filatelistas são uma casta estranha, silenciosa, semelhante a uma variedade de peixes, de todas as idades, mas apenas do sexo masculino; as mulheres, aparentemente, mostram-se insensíveis ao estranho encanto do acto de colar quadradinhos de papel colorido em álbuns. Também vendíamos horóscopos a seis dinheiros, compilados por alguém que se gabava de ter previsto o terramoto no Japão. Vinham em sobrescritos fechados e eu próprio nunca abri nenhum, mas era frequente as pessoas que os compravam regressarem mais tarde, dizendo-nos que o horóscopo se revelara «certíssimo». (Sem dúvida, qualquer horóscopo nos parece «certíssimo» se disser que somos extremamente atraentes aos olhos do sexo oposto e que o nosso pior defeito é a generosidade). Fazíamos bom negócio coma venda de livros infantis, sobretudo restos de edição a preços de saldo. Os modernos livros infantis são objectos bastante horrendos, principalmente quando os vemos em grandes quantidades. (...)"

Isto é por demais real... vale a pena ler o resto, dirija-se a uma livraria e compre o livrinho.

George Orwell, in 'Livros &Cigarros'

Sunday, February 03, 2013

O momento "Terminal"

Estou, particularmente, satisfeito por ter feito uma mini campanha ao género de "Terminal". Foram só horas, bem diferente dos muitos dias passados por Tom Hanks no terminal do John F. Kennedy, em Nova Iorque. Não é todos os dias que vamos até ao Aeroporto da Portela ler umas páginas de Mo Yan e comer algumas fatias de um enjoativo bolo de laranja. E dito isto, entre viadutos e pontes, somos ambos casos perdidos e... ainda bem!

Monday, January 28, 2013

"Great Gatsby" de F. Scott Fitzgerald


"The Great Gatsby" de F. Scott Fitzgerald é considerado uma das grandes obras da literatura clássica mundial, enquadrando-se como uma referência na literatura norte-americana. Este clássico passeava-se há algum tempo sobre uma das minhas estantes, estava em lista de espera mas finalmente tomou a sua vez. O "Grande Gatsby" dá-nos uma forte mensagem; tantas vezes programamos e estabelecemos a vida em função de outros, tantas vezes sonhamos tão alto e projectamos um ideal dissimulado que outrora parecia-nos, de certa forma, conveniente. A busca desmedida pode levar-nos a uma desgraça que não estaria, certamente, nos planos. Assim aconteceu com Jay Gatsby que criou um espaço em busca da sua grande paixão, deixou de viver a sua vida natural lançando-se numa vida expectante, de incerteza, de uma busca pela sua antiga Daisy. Gatsby encontraria Daisy, mas essa busca acabaria por ditar a sua desgraça.

Thursday, January 03, 2013

Wednesday, January 02, 2013

Ano Novo" em "Desespero" por Vladimir Nabokov

Foi mais ou menos neste espírito que cheguei ao Ano Novo; recordo a carcaça negra dessa noite, essa noite sustendo a sua respiração de bruxa idiota para o bater da hora sacramental. À vista, sentados à mesa; Lydia, Ardalion, Orlovius e eu, muito quieto, com a rigidez brasonada das criaturas heráldicas. Lydia com o cotovelo na mesa, o indicador erguido atentamente, os ombros nus, o vestido tão variegado como o verso de uma carta de jogar; Ardalion, agasalhado com uma manda de viagem (por causa da porta da varanda aberta), um brilho vermelho na gorda cara leonina; Orlovius, de fraque preto, óculos reluzentes, colarinhos virados, a engolir as pontas do laço preto; e eu, o Raio Humano, iluminando toda a cena.
Óptimo, agora já podemos mexer-nos, sê rápido com essa garrafa, o relógio vai dar as badaladas. Ardalion serviu o champanhe e ficámos todos quietos e calados outra vez. De esguelha e por cima dos óculos, Orlovius olhou para a sua velha cebola de prata, pousada na toalha: ainda faltam dois minutos. Alguém na rua foi incapaz de aguentar mais tempo e estourou com um grande estampido; e depois de novo o silêncio. Fitando o seu relógio, Orlovius estendeu lentamente para o seu copo uma mão senil com as garras de um grifo.
De súbito, a noite cedeu e começou a rasgar; da rua chegavam aclamações; com os nossos copos de champanhe, saímos para a varanda, que nem reis. Os foguetes zuniam muito acima da rua e com um estrondo rebentavam em lágrimas brilhantes de cor; e em todas as janelas, em todas as varandas, enquadrados nos triângulos e quadrados de luzes festivas, havia gente a gritar uma e outra vez a mesma saudação idiota.

Vladimir Nabokov, in 'Desespero'