Tuesday, November 29, 2016

"Medo", "Até o silêncio tem um fim" por Ingrid Betancourt


"O medo é normal. Para alguns o medo é um travão; para outros, é um motor. O importante é não nos deixarmos dominar por ele. Quando tomas a decisão de te evadires, fazes isso friamente, racionalmente. A preparação é essencial, porque na acção sob o efeito do medo, não deves pensar, tens de agir. E actuas por etapas. (...) O medo, tu sente-lo, tu aceita-lo, mas deixa-lo de lado."

Ingrid Betacourt in "Até o silêncio tem um fim"


Saturday, November 19, 2016

"Castigo", Capítulo XII, Sonata Kreutzer - Lev Tolstoi


"Castigo", Capítulo XII, Sonata Kreutzer - Lev Tolstoi

"Mais cedo ou mais tarde, cada vez que violamos as leis morais recebemos a devida punição. Assim, todos os meus esforços para tornar a lua-de-mel num sucesso foram condenados ao fracasso. Foi um período de vergonha, tédio, acabando por se transformar numa verdadeira tortura.
De facto, esta alteração ocorreu desde muito cedo. Um dia, encontrando a minha mulher entediada... penso ter sido no terceiro ou quarto dia de casados... perguntei-lhe qual era a causa da sua melancolia e comecei a abraçá-la, pensando eu que seria isto o que ela pretenderia da minha pessoa; mas afastando os meus braços,começou a chorar. - O que se passa? - perguntei. Foi incapaz de mo confessar, mas a sua tristeza e o seu desânimo eram notórios. Era possível que os seus nervos lhe tivessem revelado a natureza da nossa relação; mas não sabia expressar o que já sentia instintivamente. Questionei-a várias vezes sobre a razão do seu estado; murmurou-me sentir saudades da mãe. Percebi não ser essa a razão, e continuei a consolá-la sem fazer referência ao que me dissera. Não compreendera o seu abatimento moral, e que o facto de ter falado na mãe era apenas uma desculpa; pegando no pretexto de não ter feito a referência à sua mãe, mostrou-se ofendida, por não ter acreditado nela. Agora via que eu não a amava. Censurei-a chamando-a caprichosa;o seu rosto transfigurou-se de imediato. A tristeza deu lugar a uma irritação, passando a recriminar-me,usando as palavras mais rancorosas, e apelidando-me de egoísta e cruel. Olhei-a fixamente; todo o seu ser expressava frieza e hostilidade... quase posso dizer ódio... em relação à minha pessoa.
Recordo-me de ter sentido invadido pelo horror; o que significava? Mas como poderia ser? O amor personifica a união de duas almas? E, em seu lugar, isto! Mas será possível?- Questionei-me. - Esta não é seguramente a mulher que eu conheço!
Fiz todos os esforços para a acalmar, mas rapidamente me deparei com uma parede inexpugnável de frieza e hostilidade venenosa; sem saber como, senti-me a ser chicoteado até um estado de irritação extrema, do qual resultou uma verborreia de agressões mútuas.
Foi demasiado horrível a impressão deixada por esta nossa primeira discussão. Chamei-lhe discussão, mas na verdade era algo mais grave, era a descoberta do abismo criado entre nós. Aquilo a que chamára-mos de "amor" tinha-se esgotado; e ali estávamos, frente a frente, dois egoístas e dois estranhos.
Nem então tomei consciência de que essa frieza e hostilidade constituíam a nossa relação; isto também acontecia porque logo a seguir ao casamento estes sentimentos eram escondidos pelos "vapores do amor"; assim, parti do princípio de que o sucedido fora uma mera discussão à qual se seguiria a reconciliação, e que esses desentendimentos semelhantes nunca mais iam ocorrer.
Pouco tempo depois, ainda durante o primeiro mês de lua-de-mel (uma época em que por vezes deixamos de ser necessários um ao outro) irrompeu a segunda discussão. Esta impressionou-me ainda mais profundamente que a primeira. Então a primeira discussão não fora um mero acidente, disse para comigo, era o resultado de uma necessidade , que se ia repetir devido a essa mesma necessidade.Mas o que me chocou ainda mais nesta segunda discussão foi a total ausência de um pretexto. Teve a ver com dinheiro, algo de tão mesquinho que eu não pensara associar à minha mulher; recordo-me de ela me acusar de suborno, e de me criticar por eu dizer que era um direito que me assistia. Era uma acusação sem qualquer fundamento,idiota, malévola e monstruosa.
Perdi as estribeiras e censurei-a sem rodeios; por sua vez ela recriminou-me; e ao olhar a expressão do seu rosto, li nos seus olhos a mesma crueldade e inimizade deliberadas que tinham gelado o meu coração na primeira discussão.
Lembro-me de ter tido algumas discussões com o meu pai e o meu irmão; mas nunca tinha ficado aquele ódio amargo que existia entre a minha mulher e eu. Mas não se passou muito tempo sem que este ódio tivesse sido disfarçado de "amor" e, mais uma vez,me consolei, dizendo a mim próprio que estas discussões tinham sido erros,apenas desentendimentos que facilmente seriam esclarecidos. Mas a terceira e quarta discussões dissiparam esta ilusão; tomei consciência de que não se tratava de acidente ou desentendimento,mas o resultado de uma necessidade; apercebi-me que a nossa relação seria sempre assim, e que estas discussões se repetiriam uma após outra.
O meu coração gelou ao pensar no nosso futuro. O meu sofrimento tornou-se ainda mais profundo, só de imaginar que iríamos viver numa eterna discórdia, (exactamente o contrário do que eu planeara e de que tantas vezes me gabara.) Os outros eram mais felizes do que nós. Naquele altura desconhecia que a maior parte dos casais também vivia assim; e os outros também assumiam que a sua infelicidade... tal como a minha... era invulgar; só que a escondiam das outras pessoas e faziam todos os esforços para a ocultar deles próprios.
No nosso caso esta infelicidade começou a seguir ao casamento, aumentando gradualmente de intensidade e crueldade. Logo após as primeiras semanas de casados senti,com todo o meu coração, ter sido apanhado numa armadilha; o que eu ambicionara ter no meu casamento... uma fonte de felicidade... tornara-se em algo muito diferente, um fardo muito pesado de carregar; mas, como todos os outros casais, recusava-me a admitir tal, não só pelos que me rodeavam... mesmo que isto durasse toda a minha vida... mas também por mim mesmo.
Agora, quando penso nisto, é um verdadeiro mistério para mim, como pude estar cego tanto tempo relativamente à vida que levava. Era fácil de notar que todas as nossas discussões se baseavam em ninharias e que, depois de feitas as pazes, já nem tão pouco nos lembrávamos do que tinha estado na sua origem. A capacidade de raciocínio não era suficientemente rápida a criar pretextos ilusórios que alimentassem a constante hostilidade da nossa relação. Se as discussões eram cada vezes mais frequentes, os motivos para as reconciliações eram cada vez menores. Ocasionalmente estes tomavam a forma de palavras, explicações, até mesmo lágrimas,mas por vezes... essa lembrança provoca-me um verdadeiro desgosto... quando nos tínhamos recriminado de forma mais vim e amarga, seguia-se um período de silêncio que culminava em sorrisos, beijos e abraços."


Wednesday, November 09, 2016

O Reencontro - Parte ...

Tinha sido há tanto tempo que até já não nos recordávamos do momento: seria noite ou dia? frio ou calor? Sol ou chuva? Passara efectivamente tempo, demasiado tempo, mas ao contrário de muitas coisas que se perdem com o desgaste temporal, este sentimento benevolente, manteve-se inalterado. É maravilhoso reencontrar alguém que nos diz tanto e reconforta e vê-lo a brilhar como outrora o fazia num outro local, num outro tempo... e pensar que o tempo passou mas a conexão continua verdadeira e real e nem os tempos mudos onde a sonata da ausência tocou apagaram uma autêntica cumplicidade e naturalidade de encarar a vida. Os dilemas esses perduram, parece que nos atolamos sempre em sensações descabidas e desnecessárias e revelamos um ao outro em confidencias os nossos perigos, receios e histórias vergonhosas... não seria natural se assim não acontecesse. Em suma, nada mudou... viveremos sempre com a consciência preguiçosa de aquela cegonha nos trouxe nas mesmas asas mas que deixou-nos em pontos de partida distintos, que o tempo nos guardará nem que mais seis anos se passem e que, provavelmente, a sonata do silêncio nos embalará de novo mas, conscientemente sabemos que apesar do tempo o próximo reencontro será vivido da mesma forma: natural, cúmplice e simples. 

Este é o Marco e aquela é a Inês, somos cúmplices de uma vida cheia de tumultuosos labirintos, terramotos inesperados e paredes deliberadamente rabiscadas e continuaremos a abraçar-nos com intensidade nos reencontros e nas despedidas... Porque é assim que nós somos.