Thursday, August 30, 2012

A Desgraça do Sonhador

E vocês sabem o que é um sonhador, cavalheiros? É um pecado personificado, uma tragédia misteriosa, escura e selvagem, com todos os seus horrores frenéticos, catástrofes, devaneios e fins infelizes... um sonhador é sempre um tipo difícil de pessoa porque ele é enormemente imprevisível: umas vezes muito alegre, às vezes muito triste, às vezes rude, noutras muito compreensivo e enternecedor, num momento um egoísta e noutro capaz dos mais honoráveis sentimentos... não é uma vida assim uma tragédia? Não é isto um pecado, um horror? Não é uma caricatura? E não somos todos mais ou menos sonhadores?

Fiodor Dostoievski, in "Escritos Ocasionais"

Wednesday, August 29, 2012

Na madrugada, um "Momento"


Uma espécie de céu
Um pedaço de mar
Uma mão que doeu
Um dia devagar
Um Domingo perfeito
Uma toalha no chão
Um caminho cansado
Um traço de avião
Uma sombra sozinha
Uma luz inquieta
Um desvio na rua
Uma voz de poeta
Uma garrafa vazia
Um cinzeiro apagado
Um hotel na esquina
Um sono acordado
Um secreto adeus
Um café a fechar
Um aviso na porta
Um bilhete no ar
Uma praça aberta
Uma rua perdida
Uma noite encantada
Para o resto da vida.

Pedes-me um momento
Agarras as palavras
Escondes-te no tempo
Porque o tempo tem asas
Levas a cidade
Solta me o cabelo
Perdes-te comigo
Porque o mundo é o momento.

Uma estrada infinita
Um anúncio discreto
Uma curva fechada
Um poema deserto
Uma cidade distante
Um vestido molhado
Uma chuva divina
Um desejo apertado
Uma noite esquecida
Uma praia qualquer
Um suspiro escondido
Numa pele de mulher
Um encontro em segredo
Uma duna ancorada
Dois corpos despidos
Abraçados no nada
Uma estrela cadente
Um olhar que se afasta
Um choro escondido
Quando um beijo não basta
Um semáforo aberto
Um adeus para sempre
Uma ferida que dói
Não por fora, por dentro.

"Momento",  Pedro Abrunhosa

Monday, August 27, 2012

Rodion Raskólnikov

"De repente, surgiu junto dele a Sónia. Aproximou-se de mansinho e sentou-se. Raiava a manhã, o friozinho da madrugada ainda não se fora embora. Sónia vestia a velha capa e o lenço verde. Ainda tinha no rosto os sinais da doença, mais magra ainda, mais pálida. Sorriu para ele, afável e alegremente, mas, como de costume, foi com timidez que lhe estendeu a mão. 
Estendia-lhe sempre a mão timidamente, às vezes nem se atrevia a fazê-lo, como medo que ele a rejeitasse. E Raskólnikov pegava-lhe sempre na mão com repugnância, era com um ar aborrecido que a recebia sempre, às vezes ficava teimosamente calado durante a visita. Sónia tinha-lhe medo e ia embora magoada. Mas hoje não, as mãos deles não se separaram; Raskólnikov lançou-lhe um olhar rápido de soslaio, não disse nada e baixou os olhos. Estavam sozinhos, ninguém a vê-los, o guarda tinha-lhes virado as costas. 
Como aquilo aconteceu, nem ele próprio sabia, mas uma força qualquer como que o levantou e o arremessou aos pés dela. Chorava e abraçava os seus joelhos. No primeiro momento, Sónia assustou-se terrivelmente, ficou lívida. Mas, num relâmpago, logo percebeu tudo. Nos olhos dela raiou uma felicidade infinita: percebera, já não tinha dúvidas, ele amava-a, amava-a perdidamente, chegara finalmente o instante..."

Raskólnikov é das personagens mais sinistras e maravilhosas que já li. Mais de 500 páginas num profundo combate intelectual, com pensamentos obscuros e melancólicos. Chegamos a entrar na névoa de São Petesburgo, caminhar a seu lado, ouvir os seus passos e sentir um pouco daquela nuvem negra que sempre o acompanha. No fim há uma salvação do homem que parecia perdido, Sonetchka foi mais forte e teve a sua sorte devolvendo a um homem desfeito um pouco de vida. São Petesburgo tornou-se depois isto um destino fundamental no futuro; a cidade que Dostoyevsky considerou ser a "A cidade mais abstracta e intencional do mundo.".

Wednesday, August 22, 2012

Anna Karénina, Lev Tolstoi


""Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira"

Está a chegar, está quase cá em casa... Trabalho na Bertrand mas a Fnac é que presenteia-me, não deixa de ser curioso!

Sunday, August 19, 2012

"A Gaivota", Anton Tchékhov

Trigórin - Quando queres, podes ser excepcional. Um amor jovem, encantador, poético, um amor que nos leva até ao mundo dos sonhos - só ele nos pode dar a felicidade na terra! Ainda nunca tinha sentido um amor assim...na juventude não tive tempo - andei a bater à porta das editoras, a lutar contra a pobreza... Agora aí está ele, este amor, chegou finalmente, chama por mim... Que sentido tem fugir dele?
Arkádina (com raiva) - Perdeste o juízo!
Trigórin -  Ainda bem.

Anton Tchékhov, in 'A Gaivota'

Friday, August 17, 2012

Memorial da evolução

Há particularidades que pouco nos escapam e no meu caso como livreiro tenho vindo a reparar que não há uma designação única para o devido chamamento. De entre as horas que passei a catalogar pessoas e as pessoas a catalogarem-me a mim cheguei à conclusão que há pessoas estranhas. Quem não saberia disso? eu próprio sou uma delas. No chamamento há quem me tome por menino, o rapaz, o senhor, o homem. Não sei bem se estas derivações vêm consoante a imagem ou da perspectiva de cada um. Posso adiantar que a tirada do "não faças isso, o homem ralha contigo" tornou-se das mais incomodativas da história, o verbo ralhar soou a angústia, só tive tempo de retaliar dizendo "não faço mal a ninguém minha senhora" mas... "não deixe o seu filho varrer-me as pilhas de livros e espalhá-las pelo chão", pensei. "Menino", tomado pelas mães dos pequenos autoritários, responsáveis, daqueles que levam uma boa educação com regras para tudo e mais alguma coisa. O "rapaz" para a gente do povo, do despachar, do viver a alma, do nunca esquecer o muro das lamentações. O "senhor", que horror, que perspectiva tão idosa embora seja aceitável no politicamente correcto. Há quem ainda me tome por livreiro, casos raros, há ainda as crianças que julgam que tudo isto se passa numa Biblioteca e, portanto, bibliotecário. De entre tantos nomes e feitios não posso deixar de ver uma certa equivalência com a vida... menino, rapaz, homem, senhor... acabamos todos por viver neste passeio de tempestades e bonança do qual chamamos vida. Quem diria que tudo passa tão rápido, numa velocidade estonteante... 27, minha gente, 27, é a alma que começa a amadurecer e tornar-se histórica, é a vida a correr e os passos de magia a tardarem por aparecer. Neste dia tão particular acabo "Crime e Castigo", avanço para "Irmãos Karamazov" e tenho em vista investidas bem assentes no mercado russo com Vladimir Nabokov, Tolstoi, Anton Tchekhov, Mikhail Bulgakov e Ivan Turguéniev. Ando a ganhar um fascínio pela literatura mais pesada dos clássicos russos deve ser da idade, deve ser. Uma coisa é certa após ultrapassar esta vaga pode ser que "As cinquenta sombras de Grey" deixem de assombrar a livraria.

O livreiro estagiário,
Marco Martins

Saturday, August 11, 2012

Há Palavras que Nos Beijam

Há palavras que nos beijam 
Como se tivessem boca. 
Palavras de amor, de esperança, 
De imenso amor, de esperança louca. 

Palavras nuas que beijas 
Quando a noite perde o rosto; 
Palavras que se recusam 
Aos muros do teu desgosto. 

De repente coloridas 
Entre palavras sem cor, 
Esperadas inesperadas 
Como a poesia ou o amor. 

(O nome de quem se ama 
Letra a letra revelado 
No mármore distraído 
No papel abandonado) 

Palavras que nos transportam 
Aonde a noite é mais forte, 
Ao silêncio dos amantes 
Abraçados contra a morte. 

Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'

Saturday, August 04, 2012

Reflexão de Reese


Como assíduo espectador de séries, por vezes, encontro diálogos que, simplesmente, fascinam-me. Este é um deles tirado da série "Person of Interest" e que é, sem dúvida alguma, uma das melhores séries que vi até agora. Aqui está uma boa reflexão:

"When you find that one person who connects you to the world, you become someone different, someone better. When that person is taken from you, what do you become then?"