Thursday, June 28, 2012

Capítulo XXI, Principezinho, Antoine de Saint-Exupéry

Sem clientes na loja e a precisar de relaxar depois de horas intensas a transportar cultura entre as mãos decidi ler um dos meus livros de sempre. Cada vez que o leio tenho um Principezinho diferente, disposto a dar-me uma boa lição, a dizer-me, uma após outra, "estás mais velho, estás esquisito" pois "não há dúvidas que as pessoas crescidas são bastante/muito/muitíssimo esquisitas." Gostava que todos pudessem ler este livro mas que o fizessem com atenção, não encarassem as palavras como bonitas mas sim como uma dádiva e que pudessem aprender algo mais, aprender a ser alguém melhor. Então no meio de tantas palavras mágicas acho que o encontro com a raposa dá-nos uma essência do que é uma amizade, a cumplicidade, o amor, a saudade.

"E foi então que apareceu a raposa :- Bom dia, disse a raposa.
- Bom dia, respondeu polidamente o príncipezinho, que se voltou, mas não viu nada.
- Eu estou aqui, disse a voz, debaixo da macieira...
- Quem és tu ? Perguntou o príncipezinho. Tu és bem bonita...
- Sou uma raposa, disse a raposa.
- Vem brincar comigo, propôs o príncipezinho. Estou tão triste...
- Eu não posso brincar contigo, disse a raposa. Não me cativaram ainda.
- Ah! Desculpa, disse o príncipezinho.
Após uma reflexão, acrescentou :
- Que quer dizer « cativar »?
- Tu não és daqui, disse a raposa. Que procuras ?
- Procuro os homens, disse o príncipezinho. Que quer dizer « cativar »?
- Os homens, disse a raposa, têm fuzis e caçam. É bem incômodo ! Criam galinhas também. É a única coisa interessante que eles fazem. Tu procuras galinhas ?
- Não, disse o príncipezinho. Eu procuro amigos. Que quer dizer « cativar »?
- É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa « criar laços... »
- Criar laços ?.
- Exatamente, disse a raposa. Tu não és ainda para mim senão um rapazinho inteiramente igual a cem mil outros rapazinhos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...
- Começo a compreender, disse o príncipezinho. Existe uma flor... Eu creio que ela me cativou...
- É possível, disse a raposa. Vê-se tanta coisa na Terra...
- Oh! Não foi na Terra, disse o príncipezinho.
A raposa pareceu intrigada :
- Num outro planeta ?
- Sim.
- Há caçadores nesse planeta ?
- Não.
- Que bom ! E galinhas ?
- Também não.
- Nada é perfeito, suspirou a raposa.
Mas a raposa voltou à sua ideia.

- Minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens caçam-me a mim. Todas as galinhas se parecem e todos os homens se parecem também. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos me fazem entrar debaixo da terra. O teu me chamará para fora da toca, como se fosse música. E depois, olha! Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...
A raposa calou-se e considerou por muito tempo o príncipe :
- Por favor... Cativa-me! Disse ela.
- Bem quisera, disse o príncipezinho, mas eu não tenho muito tempo. Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm mais tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me !
- Que é preciso fazer? Perguntou o príncipezinho.
- É preciso ser paciente, respondeu a raposa. Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal entendidos. Mas, cada dia, te sentará mais perto...
No dia seguinte o príncipezinho voltou.
- Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta a agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração... É preciso ritos.
- Que é um ritual? Perguntou o príncipezinho.
- É uma coisa muito esquecida também, disse a raposa. É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias; uma hora, das outras horas. Os meus caçadores, por exemplo, possuem um ritoual. Dançam na quinta-feira com as raparigas da aldeia. A quinta-feira então é o dia maravilhoso! Vou passear até a vinha. Se os caçadores dançassem qualquer dia, os dias seriam todos iguais, e eu não teria férias !
Assim o príncipezinho cativou a raposa. Mas, quando chegou à hora da partida, a raposa disse :
- Ah ! Eu vou chorar.
- A culpa é tua, disse o príncipezinho, eu não te queria fazer mal; mas tu quiseste que eu te cativasse...
- Quis, disse a raposa.
- Mas tu vais chorar! Disse o príncipezinho.
- Vou, disse a raposa.
- Então, não ganhaste nada com isso!
- Ai ganhei, sim, senhor! - disse a raposa -  por causa da cor do trigo.
Depois ela acrescentou :
- Vai rever as rosas. Tu compreenderás que a tua é a única no mundo. Tu voltarás para me dizer adeus, e eu dar-te-ei um presente de despedida: conto-te um segredo.
Foi o príncipezinho rever as rosas :
- Vós não sois absolutamente iguais a minha rosa, vós não sois nada ainda. Ninguém ainda vos cativou, nem cativastes a ninguém. Sois como era a minha raposa. Era uma raposa igual a cem mil outras. Mas eu fiz dela um amigo. Ela é agora única no mundo.
E as rosas estavam desapontadas.
- Sois belas, mas vazias, disse ele ainda: Não se pode morrer por vós. Minha rosa, sem dúvida um transeunte qualquer pensaria que se parece convosco. Ela sozinha é, porém mais importante que vós todas, pois foi a ela que eu reguei. Foi a ela que pus sob a redoma. Foi a ela que abriguei com o para vento. Foi dela que eu matei as larvas (exceto duas ou três por causa das borboletas). Foi a ela que eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes. É a minha rosa.
E voltou, então, à raposa :
- Adeus, disse ele...
- Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.
O essencial é invisível para os olhos, repetiu o príncipezinho, a fim de se lembrar.
- Foi o tempo que perdeste com a tua rosa que fez tua rosa tão importante.
- Foi o tempo que eu perdi com a minha rosa... Repetiu o príncipezinho, a fim de se lembrar.
- Os homens esqueceram essa verdade, disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa...
- Eu sou responsável pela minha rosa... Repetiu o príncipezinho, a fim de se lembrar."

Sunday, June 24, 2012

Brown Penny

I WHISPERED, 'I am too young,'
And then, 'I am old enough';
Wherefore I threw a penny
To find out if I might love.
'Go and love, go and love, young man,
If the lady be young and fair.'
Ah, penny, brown penny, brown penny,
I am looped in the loops of her hair.
O love is the crooked thing,
There is nobody wise enough
To find out all that is in it,
For he would be thinking of love
Till the stars had run away
And the shadows eaten the moon.
Ah, penny, brown penny, brown penny,
One cannot begin it too soon. 


William Butler Yeats

Saturday, June 23, 2012

"Ouvi dizer", para um sempre, eterno.

"A cidade está deserta,
E alguém escreveu o teu nome em toda a parte:
Nas casas... nos carros... nas pontes... nas ruas...
Em todo o lado essa palavra
Repetida ao expoente da loucura!
Ora amarga! Ora doce!
Para nos lembrar que o amor é uma doença,
Quando nele julgamos ver a nossa cura!"

"Ouvi Dizer",  Ornatos Violeta

Friday, June 22, 2012

Re-Post: Medo (2006)

Um amigo virou-se para mim e disse: "lembras-te quando ganhaste aquele prémio literário e fizemos uma data de quilómetros de ida e volta quase sem parar? Quando ganhas outro?" resposta simples, teria de participar. Isto não é quando se quer, é quando dá-me "ganas". No entanto lembrei-me que esse texto tinha vindo dos primórdios da tua existência, eras um bebé a precisar de atenção e eu comecei por educar-te com visões mais tristes do que felizes. Como pai assumo a minha responsabilidade, cresceste demasiado depressa... Mas vamos lá relembrar o texto premiado e que tinha fortes lacunas na sua escrita.

"Medo de me enclausurar num universo vazio, de palavras simbólicas sem nexo... Terror de sentir passos de solidão mórbida a rastejarem numa angústia desmedida. A resposta revolucionária de alguém que se sente surge sempre na eternidade! Imagina que o mundo chama por ti, escutas uma espécie de sirene irritante que capta as tuas sensações inquietantes, sentes um arrepio assombroso e olhas à tua volta, segues o teu caminho cumprindo as regras seguras impostas na convenção artificial que representas, entras num mundo obscuro onde te sentes em comunhão com a paz. Vinda de um nada, a tristeza chegou, depois instalou-se sem atribuir motivos, razões, senta-te... olha para ti de uma forma terna, piedosa e mantém um silêncio divinal que te deixa em plena confusão sentimental, surge um aglomerado "emocionista" de nível superior. A tristeza chora rios de água quente que vão desaguando, segundo após segundo, num chão que não se surpreenderia com a novidade, recebia com amizade mais uma de uma infinidade... com simpatia abraçava-as como sempre o fez e divinalmente enchaguava-as, tornando-as parte de um só elemento, aceitando-as. Do outro lado, brilha um olhar, escuta-se um ritmo cardíaco acelerado ao som da batuta, o ar congela, levantas-te, corres em direcção a uma parede branca, lanças as tuas mãos na sua direcção, fechas os olhos com firmeza e convicção, a tristeza segue-te, dissolve-se em ti e une-se ao teu espírito. Alma que amarguradamente chora em comunhão com a paz. Como um corpo morto deixa-se cair no imenso chão que é seu, e descansa na imensa paz, dorme como um anjo caído dos céus, de frágil aparência mas de espírito enorme.
Nas ruas amarguradas da vida há sempre uma tristeza que vagueia por aí, que nos consome... não me importa que não te dêem atenção, não me importa que não te vejam chorar, não me importa! Dar-te-ei a minha mão... fecha os olhos por instantes de forma segura, não tenhas medo eu estou aqui...
Não voes alto, as tuas asas verdes levariam tudo de meu contigo!
M.M"

Thursday, June 21, 2012

Convulsão

A sua locomotiva trazia-lhe inúmeros vagões de pensamentos negativos, incomodativos, inquietantes, daqueles com um sabor amargo e que nos ficam a matutar,  interminavelmente, degradantes segredos. Larga-me, dizia, engana-me e conta-me um sonho bom, que tenha um aroma doce e um toque de felicidade por mais tímida que ela seja.
Havia dias em que lhe apetecia contestar a sua ordem vulgar das coisas e tornar aceitáveis certas perspectivas menos comuns. Chegava a "casa", de rosto fechado e tudo o que lhe apetecia era despir a sua alma, colocá-la num cabide bem alto e desprezá-la, tornar-se nu, insensível, imoral e nessas condicionantes passear-se, sem noção, pelos seus cantos apenas com o seu corpo. A vida nesses momentos tornar-se-ia mais ligeira, suave, menos pensada, esquematizada, concreta e, de certa forma, aproximava-se do seu desejo fugaz de libertar-se de si próprio, do pensar, do reflectir, das teorias consecutivas que só serviam para o seu cortéx cerebral disparar, entrar em colapso e convulsionar uma maré de idealismos antagônicos. Havia nesses dias uma sensação contundente de um profundo incompleto, no seu limite a frequência obtida tinha espectros duvidosos e, nesses momentos, sentia-se a afogar na maré que enfurecida ainda crescia volumosa até a preia-mar. Sem forças para vir ao cimo, sem razão persistente, seria pertinente que nesses momentos aquele corpo com réstias de alma ganhasse a vontade lutar pela sua sobrevivência, reagindo impacientemente, lutando sofregamente, acima de tudo, mantendo-se estável, recolhendo algum bom senso, pescando em alto mar algumas palavras revitalizantes. Se sereias, ninfas existissem ou não, ele precisaria de criar alguma na sua consciência, desenhando-a, encantando-se no estabelecimento das suas formas, na procriação do seu sorriso. Na verdade precisaria de um outro alguém que lhe pudesse assassinar a corrupta solidão, que lhe entregasse uma bandeja de irresistíveis palavras, alguma voz, uma outra voz... precisava sobretudo de sentir-se essencial, especial, necessário e útil na vida de alguém para que pudesse recordar e ser recordado. A sua criação estava carregada de fracasso, chegou à conclusão que o sonho não lhe bastava, o espectro era irreal, as palavras eram só suas, os pensamentos continuavam a formular o seu vendaval, a sua tempestade e voltava ao princípio de tudo, à cadeia no topo do mundo onde vivia, ao cheiro dos cigarros destruídos sem perdão a invadirem o perfumado odor da maresia... e aquela alma ainda estava tão longe de estar pendurada no tão focado cabide. Debruçou-se, encolheu-se, abraçou-se e apagou-se.

M.M.

Wednesday, June 20, 2012

Nenhum Olhar

As minhas palavras aqui são como as palavras escritas num papel branco que se mantém branco com essas palavras invisíveis de alguém que as leia, palavras a envelhecerem por não haver quem as compreenda, a perderem o seu significado, a misturarem-se imperceptíveis numa brisa em que ninguém repara. (…) todo o meu olhar é desperdiçado por saber que tu não vês nada.

José Luís Peixoto in "Nenhum Olhar"

Saturday, June 16, 2012

O Desejo de Ser Diferente, Sándor Márai

O desejo de se ser diferente daquilo que se é, é a maior tragédia com que o destino pode castigar o homem. O desejo de ser outro, diferente daquilo que somos: não pode arder um desejo mais doloroso no coração humano. Porque não é possível suportar a vida de outra maneira, apenas sabendo que nos conformamos com aquilo que significamos para nós próprios e para o mundo. Temos de nos conformar com aquilo que somos e de ter consciência, quando nos conformamos, de que em troca dessa sabedoria, não recebemos elogios da vida, não nos põem no peito nenhuma condecoração por sabermos e aceitarmos que somos vaidosos ou egoístas, carecas e barrigudos - não, temos de saber que por nada disso recebemos recompensas, nem louvores. Temos de suportar, o segredo é isso. Temos de suportar o nosso carácter, o nosso temperamento, já que os seus defeitos, egoísmos e avidez, não os mudam nem a experiência, nem a compreensão. Temos de suportar que os nossos desejos não tenham plena repercussão no mundo. Temos de suportar que as pessoas que amamos, não nos amem, ou que não nos amem como gostaríamos. Temos de suportar a traição e a infidelidade, e o que é mais difícil entre todas as tarefas humanas, temos de suportar a superioridade moral ou intelectual de uma outra pessoa. 

Sándor Márai, in "As Velas Ardem até ao Fim"

Thursday, June 14, 2012

Re-post: Rökning Dödar (2007)

Porque volta a fazer sentido, vamos relembrar e colocar a tômbola a girar. Nem parece que foi há tanto tempo. A vida avança a passos largos, ganhamos anos, novas histórias mas a tômbola volta sempre a girar. Quero, um dia, que me saiam melhores pensamentos dessas etiquetas. Sei lá, há tanta coisa boa para acontecer "Alguém que te ama", "Alguém que, contigo, divide um sorriso sincero" porque no final, "a razão de tudo",... "Love is the answer and you know that for sure." John Lennon. 

"Ele estava farto e cansado de ouvir o seu relógio de hora a hora a tocar entusiasticamente, era algo verdadeiramente aborrecido, que o desconcentrava sem parar. Então puxava de mais um cigarro e queimava a loucura que as horas lhe traziam de bandeja, vinham embrulhadas em reflexos prateados, tudo muito requintado, simbolismos puros de glamour. O processo foi levado por uma simplicidade brutal, puxou pelo seu vício e ateou a loucura em chamas. O nobre vício que iria queimar os seus pensamentos, ou faria o renascimento dos mesmos? Digamos que muito pensou sobre as nuvens de fumo expelidas pelo pequeno mestre.
Tratava-se de algo idêntico a um sorteio de uma tômbola gigante; roda menina essa coisa circular que nunca mais pára e dir-te-ei o que a loucura assim mo diz. Rodou energicamente e parou, tirou a etiqueta dourada e leu bem alto: “as dores enunciadas pelo seu coração”, então colocou a etiqueta a dormitar no seu bolso e voltou a rodar, desta vez mais enfraquecida, parou e leu bem alto, entoando a sua voz fina: “as gargalhadas que ficaram para dar em algum minuto da sua semana”, e colocou a indicação embrulhada no seu outro bolso. E voltou a rodar, cada vez com menos energias, a tômbola mágica quase não se moveu, retirou a etiqueta e leu baixinho “a importância que dás a certos tópicos”. Então o pequeno mestre, olhou-a atentamente a colocar a etiqueta enrolada na primeira, juntou-as e colocou-as no mesmo bolso. Então questionou-a: “Porque quero eu ver essa roda a girar se só me saem etiquetas douradas com pensamentos sem sentido?” Ela, espantada pela questão repentina, respondeu timidamente: “És tu que escolhes as etiquetas”, perplexo encolheu os ombros resignado, queimando as réstias da sua loucura, e questionou mais uma vez: “Porque enrolaste a primeira etiqueta à última?”. Ela calmamente sorriu, e em poucas palavras, as que lhe foram permitidas, disse: “É a razão de tudo, no silêncio…”.
Desapareceu a nuvem de fumo pela madrugada, guardando no silêncio o enquadramento das etiquetas da loucura. E o relógio que não pára de tocar…e esta loucura que na Escadinávia é condenada pelo termo Rökning Dödar."
M.M.

"Quem Poderá Calcular a Órbita da sua Própria Alma?" Oscar Wilde

As pessoas cujo desejo é unicamente a auto-realização, nunca sabem para onde se dirigem. Não podem saber. Numa das acepções da palavra, é obviamente necessário, como o oráculo grego afirmava, conhecermo-nos a nós próprios. É a primeira realização do conhecimento. Mas reconhecer que a alma de um homem é incognoscível é a maior proeza da sabedoria. O derradeiro mistério somos nós próprios. Depois de termos pesado o Sol e medido os passos da Lua e delineado minuciosamente os sete céus, estrela a estrela, restamos ainda nós próprios. Quem poderá calcular a órbita da sua própria alma? 

Oscar Wilde, in "De Profundis"

Os Pensamentos Intraduzíveis

É sabido que comboios completos de pensamento atravessam instantaneamente as nossas cabeças, na forma de certos sentimentos, sem tradução para a linguagem humana, menos ainda para uma linguagem literária... porque muitos dos nossos sentimentos, quando traduzidos numa linguagem simples, parecem completamente sem sentido. Essa é a razão pela qual eles nunca chegam a entrar no mundo, no entanto toda a gente os tem.

Fiódor  Dostoíevski,  in "Uma Anedota Sórdida"

Tuesday, June 12, 2012

Cerimonial do Amor

Se não houver esperanças de que o teu amor seja recebido, o que tens a fazer é não o declarar. Poderá desenvolver-se em ti, num ambiente de silêncio. Esse amor proporciona-te então uma direcção que permite aproximares-te, afastares-te, entrares, saíres, encontrares, perderes. Porque tu és aquele que tem de viver. E não há vida se nenhum deus te criou linhas de força. 
Se o teu amor não é recebido, se ele se transforma em súplica vã como recompensa da tua fidelidade, se não tens coração para te calares, nessa altura vai ter com um médico para ele te curar. É bom não confundir o amor com a escravatura do coração. O amor que pede é belo, mas aquele que suplica é amor de criado.
Se o teu amor esbarra com o absoluto das coisas, se por exemplo tem de franquear a impenetrável parede de um mosteiro ou do exílio, agradece a Deus que ela por hipótese retribua o teu amor, embora na aparência se mostre surda e cega. Há uma lamparina acesa para ti neste mundo. Pouco me importa que tu não possas servir-te dela. Aquele que morre no deserto tem a riqueza de uma casa longínqua, embora morra. 
Se eu construir almas grandes e escolher a mais perfeita para a rodear de silêncio, ficarás com a impressão de que ninguém recebe nada com isso. E, no entanto, ela enobrece todo o meu império. Quem quer que passa ao longe, prosterna-se. E nascem os sinais e os milagres. 
Não importa que o amor que alguém nutre por ti seja um amor inútil. Desde que tu lhe correspondas, caminharás na luz. Grande é a oração à qual só responde o silêncio; basta que o deus exista. 
Se o teu amor é aceite e há braços que se abrem para ti, então pede a Deus que salve esse amor de apodrecer. Eu temo pelos corações cumulados.


Antoine de Saint-Exupéry, In "Cidadela"

Wednesday, June 06, 2012

Carlos Ruiz Zafón, A Sombra do Vento

Numa ocasião ouvi um cliente habitual comentar na livraria do meu pai que poucas coisas marcam tanto um leitor como o primeiro livro que realmente abre caminho até ao seu coração. Aquelas primeiras imagens, o eco dessas palavras que julgamos ter deixado para trás, acompanham-nos toda a vida e esculpem um palácio na nossa memória ao qual, mais tarde ou mais cedo - não importa quantos livros leiamos, quantos mundos descubramos, tudo quanto aprendamos ou esqueçamos-, vamos regressar. Para mim aquelas páginas enfeitiçadas serão sempre as que encontrei entre os corredores do Cemitério dos livros esquecidos.

Carlos Ruiz Zafón, A Sombra do Vento

Tuesday, June 05, 2012

Só um Mundo de Amor pode Durar a Vida Inteira


Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo. 


O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria. 



Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios.Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas. 



Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há,estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. 
Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo? 



O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida,o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. 



O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. 



O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado,viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não. 
Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também. 

Miguel Esteves Cardoso, in 'Jornal Expresso'