Thursday, June 21, 2012

Convulsão

A sua locomotiva trazia-lhe inúmeros vagões de pensamentos negativos, incomodativos, inquietantes, daqueles com um sabor amargo e que nos ficam a matutar,  interminavelmente, degradantes segredos. Larga-me, dizia, engana-me e conta-me um sonho bom, que tenha um aroma doce e um toque de felicidade por mais tímida que ela seja.
Havia dias em que lhe apetecia contestar a sua ordem vulgar das coisas e tornar aceitáveis certas perspectivas menos comuns. Chegava a "casa", de rosto fechado e tudo o que lhe apetecia era despir a sua alma, colocá-la num cabide bem alto e desprezá-la, tornar-se nu, insensível, imoral e nessas condicionantes passear-se, sem noção, pelos seus cantos apenas com o seu corpo. A vida nesses momentos tornar-se-ia mais ligeira, suave, menos pensada, esquematizada, concreta e, de certa forma, aproximava-se do seu desejo fugaz de libertar-se de si próprio, do pensar, do reflectir, das teorias consecutivas que só serviam para o seu cortéx cerebral disparar, entrar em colapso e convulsionar uma maré de idealismos antagônicos. Havia nesses dias uma sensação contundente de um profundo incompleto, no seu limite a frequência obtida tinha espectros duvidosos e, nesses momentos, sentia-se a afogar na maré que enfurecida ainda crescia volumosa até a preia-mar. Sem forças para vir ao cimo, sem razão persistente, seria pertinente que nesses momentos aquele corpo com réstias de alma ganhasse a vontade lutar pela sua sobrevivência, reagindo impacientemente, lutando sofregamente, acima de tudo, mantendo-se estável, recolhendo algum bom senso, pescando em alto mar algumas palavras revitalizantes. Se sereias, ninfas existissem ou não, ele precisaria de criar alguma na sua consciência, desenhando-a, encantando-se no estabelecimento das suas formas, na procriação do seu sorriso. Na verdade precisaria de um outro alguém que lhe pudesse assassinar a corrupta solidão, que lhe entregasse uma bandeja de irresistíveis palavras, alguma voz, uma outra voz... precisava sobretudo de sentir-se essencial, especial, necessário e útil na vida de alguém para que pudesse recordar e ser recordado. A sua criação estava carregada de fracasso, chegou à conclusão que o sonho não lhe bastava, o espectro era irreal, as palavras eram só suas, os pensamentos continuavam a formular o seu vendaval, a sua tempestade e voltava ao princípio de tudo, à cadeia no topo do mundo onde vivia, ao cheiro dos cigarros destruídos sem perdão a invadirem o perfumado odor da maresia... e aquela alma ainda estava tão longe de estar pendurada no tão focado cabide. Debruçou-se, encolheu-se, abraçou-se e apagou-se.

M.M.

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