Wednesday, January 02, 2013

Ano Novo" em "Desespero" por Vladimir Nabokov

Foi mais ou menos neste espírito que cheguei ao Ano Novo; recordo a carcaça negra dessa noite, essa noite sustendo a sua respiração de bruxa idiota para o bater da hora sacramental. À vista, sentados à mesa; Lydia, Ardalion, Orlovius e eu, muito quieto, com a rigidez brasonada das criaturas heráldicas. Lydia com o cotovelo na mesa, o indicador erguido atentamente, os ombros nus, o vestido tão variegado como o verso de uma carta de jogar; Ardalion, agasalhado com uma manda de viagem (por causa da porta da varanda aberta), um brilho vermelho na gorda cara leonina; Orlovius, de fraque preto, óculos reluzentes, colarinhos virados, a engolir as pontas do laço preto; e eu, o Raio Humano, iluminando toda a cena.
Óptimo, agora já podemos mexer-nos, sê rápido com essa garrafa, o relógio vai dar as badaladas. Ardalion serviu o champanhe e ficámos todos quietos e calados outra vez. De esguelha e por cima dos óculos, Orlovius olhou para a sua velha cebola de prata, pousada na toalha: ainda faltam dois minutos. Alguém na rua foi incapaz de aguentar mais tempo e estourou com um grande estampido; e depois de novo o silêncio. Fitando o seu relógio, Orlovius estendeu lentamente para o seu copo uma mão senil com as garras de um grifo.
De súbito, a noite cedeu e começou a rasgar; da rua chegavam aclamações; com os nossos copos de champanhe, saímos para a varanda, que nem reis. Os foguetes zuniam muito acima da rua e com um estrondo rebentavam em lágrimas brilhantes de cor; e em todas as janelas, em todas as varandas, enquadrados nos triângulos e quadrados de luzes festivas, havia gente a gritar uma e outra vez a mesma saudação idiota.

Vladimir Nabokov, in 'Desespero'

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