Friday, December 07, 2007

"Como se não bastasse"

Como se não bastassem as prostitutas e os chulos e os travestis e os drogados da seringa e o escândalo dos homens casados trazendo as mulheres de automóvel para as verem fornicar com outros, como se não bastassem as lésbicas e os gatunos e os velhotes de gabardina que de repente nos chamam, se desabotoam e estão nus por baixo só de peúgas e sapatos, como se não bastassem os bêbedos e os mendigos e os rapazinhos do Parque dispostos a fazer qualquer porcaria aos viciados por meia dúzia de tostões, como se não bastasse passar o tempo a enxotá-los com a vassoura, a telefonar à polícia e a morar com a minha esposa num cubículo que é uma miséria comparado com o luxo do prédio, um esconso para as traseiras onde os gatos miam toda a noite a cumprir a natureza, e eu, sem conseguir dormir, a colocar uma colher de sopa de veneno num tacho de almôndegas e a convocar os animais em arrulhos ternos (…)”
(António Lobo Antunes, O Manual dos Inquisadores, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1998)
Como se não bastassem as dúvidas inglórias que vindas do nada se instalaram nesta cavidade mental de orifícios tão sensíveis e o deslocamento de tantas palavras que simbolizam a energia de toda a essência deste nosso mundo tristemente virado do avesso e a vontade de conquista daquele império possuidor de tantos medos instintivos e aquele abrir e fechar de portas descontrolado que tanto estrondo causa no reino das horas resguardadas, embrulhadas na calmaria, como se não bastassem os olhares visivelmente apagados, discretamente encontrados no meio da miserável tempestade que nos acolheu e o arrepiar de peles com o toque destas sensíveis impressões digitais que formulam expressões de uma dádiva sob impulsos verdadeiramente divinais e o canto ausente das gaivotas que se erguiam vindas da areia com escala intermediária no mar, rumo ao destino das suas longas asas e o nome da tua ausência pintado em cores negras nas paredes das ruelas temperadas com desassossegos profundos, como se não bastassem as sirenes das guerras frias expostas nas páginas deste jornal, a entoarem a voz de tantas armas ansiosas por mais um disparo e o alarme irritante do vizinho de olhar sinistro que não pára de me inquietar e a sinfonia que parou de sussurrar os seus suaves encantos sobre o silêncio desta casa, como se não bastasse, o céu encontra-se repleto de um vazio de memórias, de imagens onde possa transformar a minha imaginação numa reunião incandescente de palavras e a lua escondeu-se mais uma vez de toda a humanidade e as estrelas perderam o brilho, tal como os meus olhos, é uma noite de poesias sem glórias, onde o esquecimento declina-se sobre mim, e eu, enfeitiçado por tantas histórias, corrompido pelos deuses da leve preguiça, sigo resignado pelos caminhos do ócio detestável onde o medo me conquistou, vejo figuras apáticas a correr em meu redor, solto gritos de desespero no seio do enredo onde eu vivo.
M.M.

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